Rússia e Ucrânia podem desencadear uma guerra mundial
Crise entre os dois países na fronteira é reflexo de embates históricos

Por Carolina Riveira - Revista Exame
28/01/2022 10h51

“Isto — o espalhamento da guerra, no caso de invasão russa à Ucrânia — vai muito além da Ucrânia.”

É como definiu no fim do ano passado Yulia Laputina, ministra para assuntos dos veteranos de guerra da Ucrânia, ao discorrer sobre o conflito com a Rússia. A tensão escalou na Europa como não se via há muito tempo. Potências do Ocidente estimam que sejam 100.000 soldados russos posicionados nas fronteiras da Ucrânia há meses, com negociações diplomáticas que não andaram para reverter o cenário. Em 23 de janeiro, Estados Unidos e Reino Unido mandaram esvaziar parte de suas embaixadas em Kiev, um sinal de que temem que o conflito saia de vez da retórica. 

A Otan, aliança militar liderada por potências ocidentais, começou a mover suas tropas. O governo americano também anunciou nesta segunda-feira, 24, que 8.500 soldados estão em alerta. Pela primeira vez desde a Guerra Fria, um porta-aviões, do grupo de elite da marinha dos EUA, está sob comando da Otan. 

Ainda assim, há divergências internas sobre o quão longe o Ocidente iria em um eventual embate, uma vez que a Ucrânia não é membro da Otan — há maiores gestos de Estados Unidos e Reino Unido, mas reticência da União Europeia. Entenda abaixo o histórico da crise entre Rússia e Ucrânia e o que pode acontecer a partir de agora.

A herança da Crimeia 

A tensão entre Ucrânia e os russos não vem de hoje. A crise mais recente estourou após a anexação da Crimeia, então território ucraniano, pela Rússia, em 2014. Os conflitos na fronteira leste da Ucrânia deixaram 14.000 mortos nesses sete anos. 

“Na prática, já há uma guerra acontecendo desde então”, explica Maurício Santoro, professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). 

Mas os riscos escalaram de vez com o avanço das tropas russas nos últimos meses, vistas pela Ucrânia como clara ameaça à independência do país.

O governo ucraniano, como mostra a fala de Laputina, tenta convencer as potências do Ocidente de que uma invasão russa seria um problema para a estabilidade de toda a Europa e do mundo.

Já a decisão do governo de Vladimir Putin — um ex-espião e declaradamente saudoso dos tempos de União Soviética — de ir adiante com as tropas é uma estratégia para mostrar força no tabuleiro global, como já ocorreu no episódio da Crimeia.

Em novembro de 2013, protestos varreram a Ucrânia exigindo maior integração europeia (movimento que ficou batizado de "Euromaidan"). Sob pressão popular e internacional, o Parlamento depôs o então presidente pró-Rússia, o que Putin viu como uma afronta. Em resposta, o Kremlin apoiou separatistas na Crimeia, onde já vivia numerosa população de origem russa, o que se desdobrou na anexação da região.

“Mas o que mudou, agora, é esse tamanho da ambição russa com relação à Ucrânia”, diz Santoro. “Há sete anos, o objetivo era anexar um território que era estratégico para a Rússia. O que vemos hoje é uma escalada da crise para um objetivo mais amplo, que significa definir quais vão ser as esferas de influência na Europa Oriental, onde vai passar essa linha.”

Por que a Ucrânia é disputada

A Ucrânia tem sido, desde o fim da Guerra Fria, uma fronteira entre a influência das democracias liberais da Europa e a Rússia. 

O território que hoje é a Ucrânia chegou a ser parte do antigo Império Russo. Depois, em 1919, virou uma república da União Soviética (URSS). Com o colapso do bloco, a Ucrânia selou de vez a independência em um acordo de 1994, sendo, portanto, uma democracia ainda muito jovem. 

Na outra ponta, sem a URSS, a Otan e a União Europeia passaram a agregar nos anos 1990 e 2000 muitos países que eram zona de influência soviética na chamada Europa Central. Assim, países como os Bálticos (Estônia, Letônia e Lituânia), República Tcheca, Hungria, Polônia, Eslovênia e Eslováquia se tornaram membros — a contragosto da Rússia.

Mas a Ucrânia ficou no meio do caminho. Movimentos de aproximação com a União Europeia e a Otan foram feitos ao longo dos últimos anos, além dos protestos populares de 2013 e também em 2004. Não há, no entanto, uma visão coesa no país sobre esse movimento. Enquanto a porção oeste (onde fica a capital Kiev) anseia obter os padrões europeus, a parte leste ainda se vê mais próxima dos russos. 

As demandas da Rússia

A Rússia exige, portanto, que a Otan pare sua expansão rumo aos países do leste, e acusa a aliança de estar “cercando a Rússia”. 

Outro ponto sensível foi a exigência de que a Otan não posicione tropas em territórios que não pertenciam à aliança em 1997 — ou seja, antes de incluir muitos dos ex-aliados soviéticos, que ficariam, assim, desprotegidos no caso de avanços russos. 

Além disso, a crise ucraniana virou agora teste para toda a política internacional, incluindo para a China, outra superpotência em rota de embate com os EUA. O resultado em Kiev mostrará o quanto as potências ocidentais estão dispostas a se arriscar para defender aliados como Taiwan (que se separou da China em 1959 e depende em grande parte da ajuda da Otan).

A China é a maior parceira comercial da Ucrânia e grande compradora de grãos e carne, de modo que interessa a Pequim uma estabilidade no país, diz Santoro, da Uerj. 

"Os chineses estão sendo muito discretos quanto à essa crise. Mas há uma relação de muita proximidade entre China e Rússia, ainda que não seja uma aliança militar formal", diz. "E os chineses estarão observando para ver até onde os EUA irão."

A real força da Rússia

No tênue jogo da diplomacia e da Defesa, aceitar as demandas russas poderia ser visto como um sinal de fraqueza das potências ocidentais. Outro risco é que o mesmo cenário da Crimeia possa se desenrolar em mais regiões do leste da Ucrânia, também com grande número de russos étnicos. “Existe nesses lugares o que alguns têm chamado de ‘russificação da Ucrânia’, com muitos russos tendo se mudado para essas regiões, incentivados pelo próprio governo Putin”, diz Demétrius Cesário Pereira, professor de Relações Internacionais do Centro Universitário Belas-Artes.

Além disso, para o Ocidente, o temor é de que a Rússia possa não parar apenas na Ucrânia. Os membros da Otan que são partes da antiga zona de influência soviética ficam, também, sob risco. 

Politicamente, as desavenças no exterior são uma das estratégias de Putin para manter sua popularidade e relevância dentro e fora da Rússia. 

Nos últimos anos, Putin se envolveu em conflitos que foram de apoiar regimes aliados em Cazaquistão e Belarus contra manifestantes à guerra civil na Síria (onde apoiou o ditador Bashar al-Assad). Dentro de casa, também tem dobrado a aposta contra a oposição. Em 2020, saiu vitorioso em um questionado referendo que o permitirá ficar no poder até 2036.

Antony Blinken e Sergey Lavrov, secretários de Estado de EUA e Rússia: reunião no dia 21 não trouxe resultados claros (ALEX BRANDON/POOL/AFP/Getty Images)

Em entrevista anterior à EXAME, a cientista política russa Lilia Shevtsova, autora do livro A Rússia de Putin, apontou como o presidente usa “um conflito político atrás do outro” para se “re-energizar” com o eleitorado. E para realçar sua principal força – a militar – para o resto do mundo. 

Embora Putin tenha saído com algumas vitórias do episódio da Crimeia, também perdeu ao receber uma série de sanções que pioraram a vida dos russos e levaram a economia a uma recessão entre 2014 e 2015. Longe do poderio da antiga URSS, a Rússia tem hoje economia menor que a brasileira, e depende majoritariamente das exportações de petróleo e gás.

A Rússia vai invadir a Ucrânia? 

Há uma série de possibilidades daqui em diante. Algumas apontam para uma invasão da Rússia ou apoio a separatistas somente nas regiões no leste da Ucrânia, mas sem chegar de fato ao restante do país. Um desejo antigo russo é obter uma ligação entre seu território e a Crimeia, por exemplo. Propaganda e desinformação online financiados pela Rússia em todo o país e ataques hackers (como os sofridos por políticos ucranianos neste mês) também são esperados.

Outro cenário, que o governo do Reino Unido chegou a divulgar, é o de que a Rússia planejaria ir além e derrubar o governo do atual presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, um ex-humorista eleito como presidente em 2019. 

A Ucrânia têm treinado até mesmo civis nas últimas semanas para o caso de um ataque. O exército ucraniano deve receber algum apoio financeiro de aliados da Otan, mas não é páreo para os russos. Tropas da Otan não devem se envolver diretamente, uma vez que a Ucrânia não é parte da aliança. (O objetivo seria apenas proteger seus membros na região, como os Bálticos.)

O Kremlin, por sua vez, pode cumprir a promessa de não invadir a Ucrânia por temor de uma eventual retaliação e dos custos financeiros e humanos. Há apostas de que o melhor cenário para Putin é de que consiga um recuo do Ocidente, de modo a se mostrar vitorioso. 

Mais tentativas diplomáticas também são esperadas, apesar dos fracassos anteriores. Uma reunião está marcada para quarta-feira, 26, entre representantes de Rússia e Ucrânia na França.

O presidente americano, Joe Biden, e líderes europeus se reuniram por videoconferência nesta segunda-feira, 24. A conclusão foi de que há “desejo compartilhado” por uma saída diplomática, enquanto afirmam que haveria “consequências massivas” para a Rússia caso invada a Ucrânia. 

O "racha" na Otan

Não está claro quais seriam tais "consequências". Os Estados Unidos têm se mostrado mais engajados, e o anúncio de que tropas estão mobilizadas foi visto como uma resposta a Putin. Mas as reações são mistas dentro da Otan. 

A Alemanha, onde 40% do gás natural vem da Rússia, tem sido historicamente reticente em tomar posições mais duras, tanto militares quanto em sanções financeiras, por temor de uma crise energética. O país também foi criticado pelo governo da Ucrânia por não fornecer armas à resistência ucraniana. 

“Em muitas situações há essa discordância entre EUA e União Europeia, e dentro da própria União Europeia”, diz Pereira, da Belas-Artes.

“Alguns países europeus dependem muito mais da energia produzida pela Rússia”, diz, citando que países como Espanha e França são menos dependentes e tendem a ter falas mais duras. O presidente francês Emmanuel Macron também deve falar com Putin nos próximos dias, segundo afirmou na segunda-feira, 24.

Enquanto isso, os principais acenos contra Moscou na Europa vieram não da União Europeia, mas do Reino Unido (que, vale lembrar, deixou o bloco após o Brexit).

Isso acontece por alguns motivos: envolto em uma crise interna após ir a uma festa durante o lockdown britânico, faz bem ao premiê Boris Johnson tentar voltar a atenção dos eleitores para o exterior. Além disso, o ilhado Reino Unido está menos exposto à Rússia. 

Após a videoconferência da Otan, Biden disse que há “total unanimidade” entre os aliados. Dias antes, europeus pareciam irritados com a visão americana de que uma invasão russa era iminente: o alto representante da União Europeia para as Relações Exteriores, o espanhol Josep Borrell, pediu para que fossem evitadas reações "alarmistas". 

O fato é que europeus estão, a princípio, pouco ansiosos para entrar em um conflito com a Rússia a poucos quilômetros de casa. A Rússia, por sua vez, sabe que um embate com o Ocidente poderia ser catastrófico, inclusive para o governo Putin. Apesar do auge das tensões nos últimos dias, o imbróglio pode ainda levar meses e seguir ao longo de 2022. 

menu
menu