História comum de um velho feliz |
Crônica do Cotidiano |
Olhei o prato do velho que atravessava o restaurante e pensei: arroz branco, feijão preto, batata frita, pastel, bifes, peixe frito e apenas alguns pequenos tomates. Tudo isso para o almoço de um velho aparentando 70 anos de idade. Imaginei toda aquela química diluindo-se no organismo do velho, as gorduras saturadas viajando no sangue, entupindo as veias.
Meu amigo Massa lembrou que toda esta fartura falta para muitas crianças e velhos abandonados pelo sistema econômico. É verdade, concluí, e segui comendo minha salada variada encharcada de azeite de oliva, bebendo meu suco e preparando-me para degustar as frutas do buffet. Eu, com apenas 45 anos, me cuidando com a alimentação.
O velho comeu com satisfação aquela pratarrada e serviu-se novamente, agora acrescentando salada de batata com maionese e almôndegas com molho.
Pediu outra garrafa de guaraná açucarado e depois foi aos doces. Serviu pudim, sagu, torta de bolacha, creme de leite sobre tudo e deliciou-se olhando as imagens dos gols da rodada na televisão pendurada no refeitório.
Arrematou toda aquela comilança com um cafezinho bem açucarado e na saída acendeu um cigarro para pegar a rua e caminhar lentamente. Não se preocupava com a saúde, não tinha medo da morte, entendia que já tinha vivido muito, criado filhos e netos, viajado a trabalho e a passeio por muitos lugares do Brasil e até do mundo. Esteve no Paraguai, Argentina, Uruguai, Chile e Estados Unidos a serviço de uma companhia de transportes de cargas que lhe aposentou aos 60 anos. Dizia aos amigos que estava no saldo da vida, sem mais ilusões.
Voltava para casa, dava uma sesteada até às 16 h e depois lia jornais e correspondências até às 18h quando ia encontrar gente no boteco da esquina do parque. Ali contavam histórias, escalavam os times, profetizavam quem ganharia o campeonato, olhavam o passar das mulheres e bebiam algo alcoólico para entorpecer a mente até o sono chegar. Sempre beliscando alguns salgadinhos no cair da noite.
Quantos dias foram assim para este e milhares de velhos da nossa velha cidade? Quantos dias seriam assim até a morte inevitável um dia chegar.
Este viúvo vivia assim em sua solidão irreparável. Num pequeno apartamento de 1 dormitório que ele limpava, organizava e passava seus dias. Às vezes era convidado para o churrasco dominical na casa de um filho ou neto que lembrava do velho. Suas manhãs eram de sono, até às 10h quando recomeçava o ritual de viver, banho, escova de dente, café, levar as roupas na lavanderia, escolher o restaurante, esperar o dia de ir no banco receber a aposentadoria, controlar as despesas.
Estava feliz. Confessava-se um vencedor. Nenhuma tragédia familiar. Vida simples e comum. Um orgulho: todos os filhos formados em universidades federais e com profissões.
Massa, o meu amigo professor de cavaquinho, disse-me: este cara jogou bola no Internacional nos anos 60. Ou melhor, foi no Grêmio Porto-alegrense onde era zagueiro, e dos melhores!
Ah não! Este cara foi vereador e deputado nos anos 70, se não me engano, remendou Massa, olhando o velho sair do restaurante na Avenida Borges. Massa estava confuso, também, acabara de completar seus 80 anos e ainda gostava de sorver um vinho barato nos botecos.
Vimos o velho algumas vezes ainda naquele bar, com seu prato cheio e sua cara despreocupada com a vida. Um semblante sério de poucos mas sinceros sorrisos. Depois não o vimos mais. Passaram-se meses e até comentei com o Massa: teria morrido, solitário, numa noite ou manhã qualquer? Teria se mudado para um outro bairro ou para uma casa na praia? Estaria num hospital, moribundo com as coronárias entupidas de gorduras? Estaria num asilo com outros velhos? Estaria vivendo com uma mulher em outra cidade?
A pergunta não teve nunca resposta até nossos dias atuais.
Segui comendo meu arroz integral, saladas, legumes e frutas, bebendo meus sucos e chás, porém sem ter certeza que viverei tantos anos como o velho feliz, como o velho Massa vivia, degustando seu vinho e tocando seu cavaquinho.